terça-feira, 20 de março de 2012

Razão e sensibilidade

Reproduzo aqui um texto de Ricardo de Marino, escrito para a Áudio & Vídeo Magazine - uma revista que trata de reprodução musical de ponta. Apesar de vindo de um contexto bastante específico é uma reflexão mais do que válida para todos sobre como a contemporaneidade lida com a estética, a arte e os espaços - físicos, emocionais e intelectuais.

Obrigada pelo partilhamento dessa bela peça, Ri!

RAZÃO E SENSIBILIDADE
 A nova iluminação do Parque do Ibirapuera, entregue no ano passado, foi alardeada com argumentos pra lá de convincentes. Quase mil novos postes de 5 m de altura e lâmpadas LED passaram a iluminar as alamedas internas e a pista de cooper com aumento de 350% na potência de iluminação e redução de 20% no consumo final. O projeto, quando observado durante o dia, transmite modernidade e passa uma antecipada sensação de cuidado e segurança pela elegância das luminárias e proximidade entre cada ponto de iluminação. A total eliminação de fiação suspensa traz um inquestionável alívio visual e valoriza o entorno.
Os principais objetivos buscados pelos projetistas e engenheiros se fazem claros: iluminação potente, uniforme e sem interferência das árvores próximas (ao contrário dos postes anteriores que eram mais altos) para gerar uma sensação de segurança no visitante noturno.
 Parecia tudo de bom até que, no início do feriado de Carnaval, fui correr no parque às 22h30. O número de frequentadores era próximo ao ideal, nem de mais nem de menos. Não tive dificuldades para chegar ou estacionar. A temperatura estava excelente e prevalecia um ar de agradável tranquilidade. Meu único incômodo foi causado, justamente, pela iluminação.
As alamedas estavam claras além do necessário, iluminadas em excesso. Sob holofotes, o asfalto foi colocado em primeiro plano em detrimento das áreas verdes adjacentes, muito menos iluminadas. Este contraste exagerado dissolveu a unidade do parque, vetando ao visitante uma maior sensação de integração com a natureza do local. Era desconfortável manter o olhar no horizonte, pois, a 5 m de altura, as luminárias ficavam dentro do campo de visão e a ofuscavam projetando sua luz esbranquiçada diretamente nos olhos.
Abaixei a vista somente para me dar conta da falta que faziam as sombras antes projetadas através dos galhos mais baixos pela antiga iluminação: a paisagem empobrecera. Sem tais contornos e figuras, o caminho asfaltado se tornou indesejavelmente monótono. O mesmo ocorreu na pista de cooper, uma das áreas que considero mais bonitas do parque: uma superiluminação dos caminhos e o entorno relegado à absoluta escuridão. Justamente ali os canteiros formados pelo vai e vem das trilhas possuem vegetação de formas variadas e interessantes, com árvores de grande porte e vegetação rasteira diversificada. Absolutamente nada foi feito para valorizá-las.
Ao custo de 11 milhões de reais, o projeto que poderia ter tornado mais agradável, lúdica e ‘criativa’ a experiência de frequentar um dos únicos parques públicos que fica aberto à noite fez exatamente o oposto. Mais seguro? Talvez. Mas, certamente, menos romântico e belo.
O que devemos enxergar por trás disso? Eu vejo a afirmação de uma estética que nos diz que o homogêneo e o controlado é que são belos; que mais é melhor; que a sensibilidade não é um caminho válido para aquilo que fazemos e construímos.
Esta estética opressora vem se alastrando mais e mais em nossas vidas. Já se tornou o padrão das gravações fonográficas contemporâneas, onde a desmedida compressão dinâmica, o excesso de edição, a afinação por algoritmos matemáticos e a ausência de perspectiva (tudo é captado em campo próximo, um músico de cada vez) tiram de cena aquilo que já havia sido alcançado décadas atrás e possuía indiscutível beleza. O fato é que há cada vez menos arte em nossas vidas e se não tomarmos cuidado, acabaremos internalizando em nos mesmos este retrocesso.
Um sistema de som de qualidade deve ser uma porta de entrada à arte em nossas vidas. Mas vejo muitos fazendo com seus sistemas o mesmo que foi feito com o Ibirapuera: jogando luz demais no que não é o mais importante e se esquecendo do conjunto, do equilíbrio, da simplicidade. Equipamentos caros não são garantia de boa música; e menos, muitas vezes, vale mais.
Sinto-me uma pessoa privilegiada por poder, a qualquer momento, escolher e tocar uma obra que expresse meus sentimentos, confira sentido existencial às minhas indagações, aplaque minha náusea, aprimore minha sensibilidade, me faça sentir conectado a outro ser humano, expanda minha consciência, me traga novos conhecimentos e potencialize minha felicidade. Vivenciar o belo também nos torna mais conscientes e menos indiferentes àquilo que não o é. Para mim é impossível pensar em música sem considerar tudo isso.

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