terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Você mostra ao mundo o que você é?

Termino o mês de janeiro com mais um texto iluminado de Artur da Távola.

Aquém ou além, seguimos desregulados
Artur da Távola
 
            Todo o nosso problema existencial consiste na verificação de se estamos aquém, além, ou exatamente no ponto do que somos.
            O nosso drama de contemporâneos consiste em que, quase sempre, estamos aquém ou além do que somos. Como nos automóveis: um problema de regulagem.
            O mais comum ( e terrível) é, externamente, nos apresentarmos como além do que somos e internamente vivermos os medos dos nossos <<aquéns>> que tanto conhecemos.
            Quando escrevo para você gostar, estou parecendo além do que sou: preciso esconder todos os meus aquéns para exibir apenas os aléns que, sei, você vai ampliar, principalmente porque não me conhece e idealizar faz-lhe bem.
            A sociedade, a luta pela vida, os valores aparentes, tudo isso prepara o homem para viver em estado de além. A própria educação é todo um processo de nos colocar acelerados, em estado de além do que somos: seja inteligente! Enfrente os riscos! Consiga as coisas! Lute pelo que quer! Valorize-se! É sempre um esforço de regular o nosso motor um pouco mais acelerando do que o normal.
            Em crianças somos tomados por mãos amigas (?) que nos exercitam no além, ou seja, no tentar ser (ou parecer), um pouco mais do que somos em inteligência, simpatia, riqueza, generosidade, bom caráter, bondade; virtudes, em suma. E vamos ficando seres externamente além do ponto próprio. Funcionamos acelerados (ou desregulados na marcha lenta) o resto da vida.
            Mas para cada pessoa que vive em estado de além do que é, torna-se necessária outra pessoa em estado aquém. E quem não consegue colocar-se na postura de além, ó tragédia, não se tranforma em normal e sim em alguém que fica aquém. O território dos <<aquéns>> está repleto de pessoas maravilhosas e que se julgaram ou foram consideradas inferiores, apenas porque não se colocaram como além do que são e não lhes foi ensinado gostar de ser como são.
            Todo o preço do terrível desgaste que sofremos, está no fato de termos que ser além ou de sofrermos a cada vez em que somos aquém. Ah, o esforço de excitar o nosso além! Sim, eu sei das energias e virtudes que tal esforço mobiliza; mas sei também das essências que massacra, das autenticidades que esgota, das purezas que conspurca.
            O nosso além, quando é transformado em doação, chega perto da santidade, mas quando é apenas meio de competição, nos leva à neurose.
            O nosso aquém, quando é entendido como a força verdadeira da fraqueza, também nos aproxima da santidade, mas quando é entendido como inferioridade, nos leva aos complexos e suas conseqüências.
            Difícil é o encontro do ponto certo. Funcionamos acelerados porque precisamos do nosso além numa sociedade de competição. Funcionamos em baixa aceleração porque por vezes a constatação do próprio aquém se impõe e nos mostra a nossa fraqueza.
            1) o chofer do ônibus parado no sinal acelerando como forma de buzinar; 2) o rapaz parado no sinal pipocando as explosões anais da sua moto; 3) o sujeito que acelera mais rápido do que devia; 4) o que buzina um vigésimo de segundo depois do sinal abrir; todos eles estão simbolizando o estado de além que foi ensinado a gerações inteiras como forma única de progredir; o estado de além exigido pela sociedade e aceito pelas pessoas como virtudes de <<quem sabe o que quer>>.
            Conseguiram a confusão ideal: a de progresso com estado de além; de aparentar além; como se progredir fosse algo desvinculado do equilíbrio e da medida exata dos homens!
            Estamos assistindo ao século dos aléns e dos aquéns. Pode ser que o próximo milênio traga para cada pessoa a possibilidade do encontro do próprio ponto. Ele será composto dos aléns e dos aquéns de cada qual. Pode ser que traga a certeza de que os aléns não são inimigos dos aquéns, nem os aléns bons e os aquéns maus (como hoje, totalmente, se crê): aléns e aquéns são partes integrantes do nosso ser e é do confronto diário entre eles que nascerá o equilíbrio do possível.
            Encontrar o próprio ponto, talvez só seja possível depois de experimentar todos os erros possíveis tanto da aceleração como da marcha lenta. O próprio ponto é composto dos aléns que nos estimulam a melhorar e da supressão dos aléns que são falsas vitórias, porque autodestruições disfarçadas.
            O próprio ponto é composto dos aquéns que enriquecem, aqueles que nos colocam do tamanho das nossas reais fraquezas, porque cada fraqueza real, devidamente entendida, não é fraqueza e não é limitação: é consciência, e só dela pode emergir a força própria de cada um.
            O próprio ponto, ou ponto certo, é aquele que descobrimos quando o que fazemos parece que nos estava destinado (na mente? no espírito?) há muito tempo. É uma espécie de destino, não no sentido do <<que estava escrito>> e sim do que correspondia a uma forma difusa e vaga de percepção algo adormecida, porém muito real, de que aquilo iria acontecer em nossa vida.
            E quando acontece trazendo paz, e a certeza de estarmos cumprindo inexplicáveis e misteriosas missões, aí a gente sabe que (ainda que por momentos) está no próprio ponto: nem aquém e nem além do que é.

Artur escreveu isso ainda no século XX. Não vejo que sua previsão de mudança para terceiro milênio tenha ocorrido, pelo menos até agora. O texto toca em questões atualíssimas que integram a ética individual ao convívio social, nos levando a refletir sobre satya, swádhyaya, tapas. Fiquei bastante surpresa, ao pesquisar na internet, por não ter encontrado esse texto já em algum lugar, por isso o digitei aqui para poder compartilhar com todos.

Comentários serão, como sempre, bem vindos!

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